
Pilar da Sustentabilidade, Segurança Alimentar e Desenvolvimento Rural no Brasil
A agricultura familiar é um dos principais pilares da produção agroalimentar no Brasil, sendo responsável por aproximadamente 70% dos alimentos consumidos pela população nacional. Distinta do modelo agroindustrial de larga escala, essa forma de produção está fundamentada na gestão familiar da unidade produtiva, no uso intensivo da força de trabalho do próprio núcleo doméstico e na valorização dos saberes tradicionais em consonância com os conhecimentos técnico-científicos. Esse arranjo contribui não apenas para a sustentabilidade ambiental, mas também para a inclusão social, a geração de renda e o desenvolvimento de territórios rurais.
O papel da agricultura familiar transcende a dimensão econômica e produtiva. Trata-se de uma estratégia de vida que articula cultura, meio ambiente e segurança alimentar. Seus sistemas produtivos são diversificados, resilientes e adaptados às realidades locais, incorporando práticas como o manejo agroecológico, o uso de sementes crioulas, a compostagem, o plantio consorciado e a conservação de recursos naturais, como matas ciliares e nascentes. Essas práticas possibilitam a produção de alimentos saudáveis, com baixo impacto ambiental, e contribuem significativamente para a mitigação das mudanças climáticas, principalmente com o desenvolvimento de agroflorestas.
No entanto, esse segmento estratégico tem enfrentado desafios estruturais intensificados nos últimos anos por mudanças na agenda governamental. A partir de 2016, políticas públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar passaram por cortes orçamentários, reestruturações institucionais e retração do papel do Estado. Programas fundamentais como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foram diretamente impactados, comprometendo o apoio à produção, à comercialização e ao acesso ao crédito para milhares de famílias agricultoras.
O Pronaf e a institucionalização da agricultura familiar
Criado oficialmente em 1995, o Pronaf representa um marco histórico na institucionalização da agricultura familiar como sujeito de políticas públicas. Fruto de intensas mobilizações sociais nos anos 1980 e 1990, o programa surgiu da necessidade de estruturar linhas de crédito específicas para pequenos produtores rurais. Com o tempo, sua abrangência foi ampliada, contemplando jovens, mulheres, comunidades tradicionais e regiões específicas, como o semiárido e a Amazônia. A emissão da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) tornou-se instrumento essencial de acesso não apenas ao crédito, mas a uma série de políticas públicas complementares.
Apesar de seus avanços, o Pronaf apresenta assimetrias e desafios, como a concentração de recursos nas regiões Sul e Sudeste, a dificuldade de acesso ao crédito por agricultores menos capitalizados, a burocracia bancária e a insuficiência de assistência técnica. Ainda assim, trata-se de uma política pública de grande relevância, responsável por consolidar a agricultura familiar como categoria estratégica para o desenvolvimento rural, a sustentabilidade ambiental e a soberania alimentar (Valadares, 2021).
Segurança alimentar e o papel do PNAE
Uma das políticas que mais contribuíram para articular agricultura familiar, segurança alimentar e desenvolvimento local foi o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Instituído pela Lei nº 11.947/2009, o PNAE determina que ao menos 30% dos recursos destinados à alimentação escolar devem ser aplicados na compra de produtos oriundos da agricultura familiar. Tal diretriz impulsionou a renda dos produtores, dinamizou a produção local e incentivou a adoção de práticas agroecológicas e sustentáveis.
Além do impacto econômico direto, o PNAE promoveu avanços na organização social dos agricultores, incentivando a formação de cooperativas, o planejamento produtivo e o fortalecimento de circuitos curtos de comercialização. Do ponto de vista nutricional e educacional, o programa contribuiu para a oferta de alimentos frescos e regionais nas escolas, fortalecendo os vínculos culturais e territoriais e promovendo a valorização da biodiversidade e dos saberes alimentares tradicionais.
Entretanto, desafios como falhas logísticas, falta de assistência técnica contínua e desarticulação entre diferentes esferas de governo ainda comprometem a plena efetividade do programa, exigindo investimentos institucionais mais robustos e coordenação intersetorial mais eficiente.
Sucessão familiar: o futuro da agricultura está em jogo
A sustentabilidade da agricultura familiar está fortemente vinculada à permanência dos jovens no campo. A sucessão familiar constitui-se como um processo complexo, que extrapola aspectos econômicos e envolve questões identitárias, afetivas e sociais. A decisão de jovens agricultores em permanecer na atividade está relacionada à viabilidade econômica da produção, ao reconhecimento de seu papel na gestão da propriedade e à possibilidade de autonomia nas decisões.
Diversos fatores comprometem a continuidade das unidades familiares, entre eles a falta de planejamento sucessório, a desvalorização da profissão de agricultor, a precarização do trabalho rural e a escassez de políticas específicas voltadas à juventude. Esse cenário tem contribuído para o êxodo rural, a masculinização do campo e o envelhecimento da população rural. Por outro lado, iniciativas como o Pronaf Jovem, a inserção em cooperativas, o acesso à educação, à assistência técnica e à diversificação produtiva aparecem como caminhos promissores para atrair e reter jovens nas atividades agrícolas.
Assim, é urgente investir em políticas públicas voltadas à juventude rural, promovendo formação profissional, acesso ao crédito, inovação tecnológica e participação ativa na gestão das propriedades. A sucessão familiar deve ser compreendida como eixo estruturante da sustentabilidade rural, da soberania alimentar e da vitalidade socioeconômica dos territórios rurais.
Agricultura Familiar como Caminho para um Brasil Sustentável e Justo
A agricultura familiar representa um modelo produtivo essencial para o Brasil, com implicações diretas na sustentabilidade ambiental, na segurança alimentar, na inclusão social e no desenvolvimento regional. Sua importância é ainda mais evidente diante dos desafios globais contemporâneos, como as mudanças climáticas, o desemprego no campo e a insegurança alimentar. Políticas como o Pronaf e o PNAE, quando fortalecidas, têm o potencial de transformar esse setor em vetor de justiça social, preservação ambiental e renovação geracional.
Todavia, para que esse potencial se concretize, é necessário enfrentar os desafios estruturais que limitam a atuação da agricultura familiar. Isso implica o resgate e o fortalecimento das políticas públicas que a sustentam, a valorização dos saberes e práticas tradicionais, a promoção da equidade regional e a inclusão dos jovens e das mulheres como protagonistas no campo. Valorizá-la é valorizar a vida, o território, a cultura e a soberania de um povo.
Fontes
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Monteiro, E.P.; Martins, C.M.; Araújo, J.G.; Brabo, M.F.; Santos, M.A.S. Sucessão na agricultura familiar brasileira: uma revisão sistemática da literatura. Revista Brasileira de Educação do Campo, 9, e15729, 2024. https://doi.org/10.70860/ufnt.rbec.e15729
Paula, S.R. Sambuichi, R.H.R.; Silva, S.P.; Alves, F.; Valafares, A.A. A inserção da agricultura familiar no Programa Nacional de Alimentação Escolar: Impactos na renda e na atividade produtiva. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, 2023. (Texto para Discussão, n. 2884). doi:10.38116/td2884-port
Perin, G. O desmonte das políticas públicas para a agricultura familiar e a nova agenda governamental. Revista de Agricultura Familiar, v. 27, n. 1, p. 01-22, 2020. https://periodicos.ufpa.br/index.php/agriculturafamiliar/article/view/9075
Valadares, A. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf): uma revisão bibliográfica (2009-2019). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. (Texto para discussão, n. 2706), 2021. https://www.ipea.gov.br/portal/publicacoes

